A atroz guerra, que brotou de uma invasão incompreensível, reacendeu um medo que desde a segunda metade do século passado se esfumava. As últimas gerações, onde me incluo, cresceram ingenuamente assumindo que as disputas são travadas sem armas, sem sangue e sem vidas desmembradas. No mundo sobram conflitos adormecidos que condenam populações inocentes mas felizmente, salvo raras excepções, as armas na Europa ocidental estão silenciadas.
Ponderei e decidi viajar até à Normandia, em França, onde o pesadelo da Segunda Guerra Mundial começou a desmoronar-se. Urge pensar num roteiro para a paz e este pareceu-me um bom caminho.
Agarrado ao volante galguei os Pirinéus e entrei em Saint-Jean-de-Luz. Inspirei num miradouro da Corniche Basque e contemplei uma ampla panorâmica da costa até Espanha. Os penhascos são deslumbrantes e mergulham no mar com a harmonia que é possível a um rochedo. No centro a Grande Plage estava repleta de veraneantes como era de esperar em Agosto. A norte da extensa praia a colina Sainte-Barbe incentivou-me a uma caminhada mais longa.
Bayonne é a maior cidade do País Basco francês e estava decorada com muitos elementos nacionalistas. Um forasteiro de passagem duvida se as bandeiras içadas são ecos de um orgulho enraizado e generalizado ou apenas um adorno típico.
A cidade é atravessada pelos rios Nive e Adour e no seu ponto de encontro dividem o centro em três zonas. Na Petit Bayonne encontrei ruas adormecidas, lojas fechadas e cartazes com palavras de intervenção. Pelo contrário, na Grand Bayonne as pessoas ocupavam as esplanadas, percorriam as ruas e o movimento era acolhedor. Cruzei a ponte para Saint-Esprit mas não me demorei nessa margem.
Ainda na costa atlântica parei em Arcachon, estendi a toalha na Plage Thiers e passeei. O intuito do desvio era conhecer a Dune du Pilat cujo acesso (oficial) de carro estava vedado. O transporte de autocarro, que era oferecido a um preço simbólico, funcionou mas deparei-me com famílias munidas de geleiras e chapéus de sol... Senti-me deslocado e indaguei-me se a duna seria apenas uma praia.
Felizmente a duna impressionou-me de imediato. É uma serra que se move lentamente com o sopro do vento. É permitido caminhar na areia e em poucos minutos a massa humana, transportada pelos autocarros, ficou distante. Foi fácil ficar isolado na imensidão das colinas desertas à beira mar e sentir a tentação de parar para contemplar a natureza despida de adornos. Voltaria vezes sem conta e adorava repetir a visita em diferentes épocas do ano e em outros momentos do dia. É um espaço mutante que se adapta à sua envolvente.
Acompanhado por um enxame de caravanas, contornei Bordeaux sem conseguir evitar aborrecidos engarrafamentos e movi-me para La Rochelle. Promovem-na como “la ville blanche” mas a imagem das fachadas brancas, que encontrei de imediato, durou pouco. Ao aproximar-me do porto encontrei um turismo massivo para o qual contribui a proximidade com a vizinha Île de Ré onde o alojamento escasseia. A entrada em La Rochelle pelo mar é assinalada por duas torres, enquadradas em milhares de fotografias, que não me cativaram. Preferi deambular pelas margens e por algumas ruelas acolhedoras onde o tempo não esticou.
Abdiquei de aventurar-me pela a Bretanha a noroeste, foquei-me na ideia inicial, e dirigi-me para o Mont-Saint-Michel já na Normandia. Quando ao longe vislumbrei a abadia, que parece um castelo encantado, deslumbrei-me. As torres, as muralhas e o seu isolamento alimentaram a ilusão de entrar num mundo de sonho.
Inevitavelmente, como a vida teima em recordar, as ilusões convertem-se em desilusões. Na ilha encontrei um espaço sobrepovoado onde não se conseguia circular. Os encontrões e as filas são o preço oculto dos destinos que estão impressos nas capas das revistas. Percorri as muralhas e visitei o que foi possível enquanto a paciência não me abandonou. No regresso, ao atravessar a enorme ponte, uma ventania carregada de areia fustigou-me como se me expulsasse. Por fim, ao longe, a ilha voltou a merecer mais uma fotografia e é essa que pretendo guardar.
As Plages du Débarquement obrigam a viajar na História até ao D-Day (6 de Junho de 1944) quando a Operação Overlord reorientou o destino de uma Europa sucumbida ao inferno nazi. Nas cinco praias do desembarque e nos seus arredores orbitam dramas sangrentos que me suscitaram um sem-fim de perguntas cujas respostas alimentaram novas questões.
Em La Pointe du Hoc assustou-me a missão suicida que foi o tiro de partida para apoiar e viabilizar o desembarque aliado. O cabo está actualmente coberto por vegetação mas são visíveis as ruínas dos bunkers e as crateras provocadas pelas explosões. Do varandim espreitei o mar distante e reconheci que nessa madrugada não faltou coragem. É fundamental não perder a esperança na Humanidade.
Por seu lado as praias não guardam muitos vestígios do D-Day nem dos dias, semanas e meses que se seguiram. Há monumentos, há placas comemorativas mas a destruição foi praticamente apagada. Curiosamente nos longos areais escasseavam banhistas e estranhei a tranquilidade com que circulei em pleno verão. Estava a água do mar gelada? Estará a aura tenebrosa da guerra ainda entranhada naquelas ondas?
Caminhei pela extensa Omaha Beach, seguramente a mais famosa das praias, com luxuosas casas construídas junto ao mar. No seu extremo ocidental sobrevivem algumas ruínas que são insuficientes para ilustrar a bravura das tropas americanas que por ali avançaram.
A esperança chegou também a terra, a leste, na Sword Beach com tropas inglesas. Apesar da roda gigante e da feira a praia era pouco emotiva. As forças inglesas desembarcaram ainda na isolada Gold Beach onde contemplei o mar e não me demorei.
Na Juno Beach, a mais movimentada das praias, são invocadas as tropas canadianas. Ligeiramente afastadas do centro estão as ruínas de defesa nazis. Na Utah Beach, onde teoricamente as tropas americanas encontraram menos resistência, estão expostos vários equipamentos militares.
Depois de assegurado o acesso à costa e instalados os Mulberry Harbours, Arromanches-les-Bains foi a principal porta de entrada de equipamentos para municiar as frentes de guerra. Estes portos provisórios, que também se tentaram erguer sem sucesso na Omaha Beach, eram gigantes como se compreende pelos gigantes blocos de betão ainda dispersos no mar (as fotografias aéreas da época são esclarecedoras). A engenharia para criar estas estruturas, vitais para o avanço da liberdade, fascinou-me.
Apesar do ímpeto germinado pelo sucesso do D-Day o avanço aliado foi lento e os rios de sangue não se estancaram. O Normandy American Cemetery e o British Normandy Memorial invocam algumas das vidas que o caminho para a paz ceifou. As populações locais, muitas vezes esquecidas, foram igualmente dizimadas sem piedade.
Por toda a região estão dispersos monumentos e memorabilia que servem a missão de preservar a memória. Conhecer o passado é essencial para prevenir a repetição de barbaridades.
A inimaginável guerra é fértil no mundo cinematográfico mas é uma aberração no mundo real. Os conflitos armados, se encarados com indiferença, ridicularizam a nossa suposta racionalidade.
Felizmente os males não são eternos e copio as palavras esculpidas na fachada do Mémorial de Caen: “La douleur m'a brisée, la fraternité m'a relevée, de ma blessure a jailli un fleuve de liberté”. Mantenho propositadamente estes versos em francês (que não entendo) para desafiar-me na sua tradução e assim testar a minha humana capacidade de raciocinar.
Paulo Vyve