Os Pirinéus, a fronteira natural entre a Península Ibérica e o continente europeu, unem com o peso dos seus cumes Espanha e França. Entre ambos a pequena Andorra encontrou e conserva o seu espaço. Lisboa, a mais de mil quilómetros, não interage com a cordilheira mas bebe nesse afastamento a inspiração para aventuras rodoviárias.
Num mapa tracei uma rota triangular cujos vértices eram Lisboa, a costa ocidental francesa banhada pelo Oceano Atlântico e a costa oriental espanhola que toca o Mar Mediterrâneo. Se as ligações com Lisboa se desejavam rápidas o passeio pelos Pirinéus, para unir as costas, imaginou-se calmo para longamente absorver a atmosfera.
Várias vezes hesitei na partida… Questionei a necessidade de ir tão longe. Duvidei também da impossibilidade de não chegar mais além. Debrucei-me na sensatez de voar até a um aeroporto próximo e alugar um automóvel para explorar as montanhas. Não! A viagem sustentava-se fundamentalmente nas duas rodas! E a scooter há muito que não recusa um desafio.
A estrada acordou de madrugada e na fronteira de Vilar Formoso, quando adiantei o relógio uma hora, Portugal ainda despertava. Continuei a cruzada por terras de Castela e Leão ignorando Salamanca, Valladolid e Burgos. Entrei no País Basco, contornei Vitoria-Gasteiz, atravessei a fronteira e até Biarritz foi um piscar de olhos. França, enfim! A longa viagem fluiu sem problemas. Apenas a chuva que se precipitou obrigou a adquirir algum equipamento de reforço.
Biarritz mistura uma atmosfera jovem e descontraída com ruas selectas e toques de requinte. É a fama do local que se autopromove. Passeou-se da Grande Plage à Rocher de la Vierge, enquanto dentro de água desejos surfistas eram ignorados pelos deuses adormecidos das ondas. Para recordar adiante, o Atlântico estava calmo como se uma poça de água fosse.
Após uma noite de descanso iniciei a escalada dos Pirinéus e rapidamente me cruzei com expedições de motociclistas. Pontualmente surgiam outros viajantes solitários mas nunca, friso nunca, encontrei outra scooter em semelhante odisseia. Porque a mão direita agarra o acelerador, é a esquerda que acena os dedos e cumprimenta quem segue em sentido contrário: “boa viagem, cuidado com as curvas”.
Rapidamente se tornou elementar que as estradas na montanha, na alta montanha, são apertadas e sinuosas ora subindo, ora descendo. A velocidade reduziu-se substancialmente antes da curva até à contra-curva e foi necessário optimizar a rota ajustando os locais de visita. Se sobravam quilómetros, escasseava tempo.
Parei sempre que a paisagem merecia e a estrada permitia. O verde dominava todas as outras cores. As montanhas e os vales ignoravam um Outono que ainda nem estava anunciado. Demorei-me na cidadela de Saint-Jean-Pied-de-Port, e passeei em Oloron-Sainte-Marie. Antes de regressar a Espanha trepei até Lescun enquanto o nevoeiro se adensava com a altura. A longa viagem até Andorra seguiu, pelas comunidades de Aragão e da Catalunha, no sentido de Jaca, Huesca e Barbastro e continuou após o pôr do sol rumo a Puente de Montañana, Tremp, Sort, La Seu d’Urgell e por fim Andorra La Vella.
Na escuridão da noite insuficientemente iluminada pelos astros e pelos faróis da mota os percursos tornaram-se solitários. Não há muitos carros na estrada montanhosa e os que há, menos que poucos, seguem apressados e desinteressados. Enquanto pensava que o conforto da cama já era merecido uma raposa atravessou a estrada e demorou-se a admirar-me. Os olhos iluminados do animal reflectiam o individualismo do momento. Estariam 20 quilómetros percorridos sem me cruzar com ninguém? Há quantas horas a minha voz não se ouvia?
Saltei várias vezes da mota para, com uma lanterna, estudar o mapa, que se estendia no chão, e somar dezenas de quilómetros por subir e descer… A gasolina que restava tornou-se uma obsessão e foi inevitável procurar uma bomba aberta nas pequenas povoações que espaçadamente iam surgindo. Quando o refinado ouro negro encheu o depósito da scooter os deuses foram elogiados e o ânimo reacendeu-se.
A profunda noite de descanso foi apreciada e com a chegada do sol conduzi rumo ao Mar Mediterrâneo seguindo as placas para Puigcerdà, Ribes de Freser, Ripoll, Vic e Girona. Em Figueres passeei em redor do Teatre-Museu Dalí onde a fila à entrada ameaçava roubar pelo menos uma hora. O edifício é em si um ponto de interesse mas toda a envolvente está sobrecarregada com turistas impacientes. É pena.
Para o mar segui e apreciei uma consistente degradação das condições meteorológicas. O vento surgiu com fúria e dificultou a aproximação à costa. Em Llançà abriguei a mota entre uns prédios para que a gravidade não a derrubasse e caminhei para a praia. As árvores e as bandeiras vergavam-se com o vendaval que agitava o Mediterrâneo… Como se um oceano fosse! Concluída a jornada costa-a-costa, do pacato Atlântico ao notoriamente irritado Mediterrâneo, encontrou-se o ponto de retorno!
A melhor opção para regressar a Andorra era, sem dúvida, por França a norte. Como a ventania impedia uma circulação segura pela costa regressei a Figueres para entrar na via rápida. Se nos dias anteriores já tinha chovido agora chovia muito mais! Muitos quilómetros depois, já em França, a chuva e o vento abrandaram para uma descontraída aproximação a Andorra. Foi talvez uma hora para respirar fundo, aquecer o corpo e concentrar energias para a subida montanhosa que conduzia ao hotel.
A última meia centena de quilómetros foi presenteada com um cocktail de elementos. A chuva regressou escoltada por um nevoeiro que se compactava com a subida. O frio atravessava toda a roupa e gelava as mãos e os pés molhados. A chuva parecia neve. Vi, enquanto alguma coisa conseguia vislumbrar, cumes brancos e algum gelo junto à estrada. A viseira do capacete embaciava-se com o calor corporal e a temperatura exterior assegurava que a mantinha fechada. Somente os túneis, que furam a montanha, abrigavam e aqueciam momentaneamente a alma. Parar era indispensável para conseguir ler os painéis com as direcções… E quando, junto à fronteira, um deles anunciou 0 ºC a temperatura do motor da mota corroborou a informação. Pé-ante-pé, ou roda-ante-roda, concluí o percurso em esforço e com um desconforto confesso. Faltou felizmente o vento que poderia ter sido uma gota de água para transbordar um copo.
Andorra La Vella é desinteressante. É bonita na sua envolvente mas oca de conteúdo. Os acessos à cidade e ao país não são fáceis pelo que a escolha como local para pernoitar não foi a melhor. O regresso a Lisboa, pela Catalunha, Castela La Mancha, Comunidade Autónoma de Madrid e Estremadura foi ousadamente longo sem pausas dignas. O pulso direito enrolado desprezou e contornou Lleida, Zaragoza, Madrid, Mérida e Badajoz.
A entrada em Portugal, na fronteira de Elvas, foi um sorriso que não contive e traduziu o regresso a uma zona de conforto cujas fronteiras foram violadas. Haverá um dia, se calhar não muito distante, em que recordarei estes 3.398 quilómetros de aventura e concluirei que foi uma loucura. Haverá outro dia, espero que muito distante, em que me julgarei velho para estes passeios e em que o meu corpo não ousará tais irreverências.
Paulo Vyve