Há sociedades que no isolamento do seu umbigo ergueram uma realidade ímpar. No entanto, a fotografia que as culturas mais ocidentais imprimem da China excede a sua singularidade. A imagem é simultaneamente medieval, porque reflecte os inauditos impérios e as dinastias passadas, e redutora, porque a abertura do país ao mundo exterior permitiu a absorção de tendências e costumes globalizados.
As cidades e os seus habitantes exibem um estilo de vida metropolitano. Estamos longe do país agrícola que a China ainda será. Estamos distantes das fábricas infernais cuja produção inunda os quatro cantos do globo. É um Comunismo Moderno, como lhe chamam entre sorrisos, porque a designação Capitalista ainda ofende alguns. Muito se ouve falar de “Um País, Dois Sistemas” quando na verdade da fé vermelha pouco mais resta além da inspiração.
Caem mitos românticos. Não existem milhões de bicicletas a cavalgar nas ruas. Há triciclos e muitas motas e ainda mais carros novos japoneses e europeus. Os engarrafamentos são suportáveis. Não se atropelam as pessoas com falta de espaço. As cidades, como o próprio país, são extensas e, por exemplo, em Pequim percorrem-se mais de cem quilómetros para atravessar a zona urbana. O mestre Confúcio e o Tai Chi são imagens simbólicas da China pelo mundo mas a sua relevância interna é substancialmente menor.
Aterrar em Pequim foi entrar numa atmosfera onde os graus centígrados se conjugaram sempre na negativa. A pouca pele exposta gelava com a leve brisa. Felizmente não soprou com força o vento e da chuva nem uma gota. No horizonte o céu permaneceu sujamente cinzento.
As temperaturas pouco convidativas proporcionaram nos locais visitados momentos pacatos sem confusões, sem filas, sem pressa. Os turistas estrangeiros foram uma constante minoria. De forma massiva e admirável o turismo interno chinês ofusca os forasteiros. Os hotéis, com requintes na qualidade, são povoados essencialmente por nacionais e o próprio comércio de souvenirs oferece uma panóplia de quinquilharia que em nada cativa o europeu mais ocidental. A língua inglesa é manejada apenas por alguns dos mais jovens. A universal linguagem gestual é compreendida e, também aqui, as calculadoras são óptimas para discutir preços.
Na actual capital chinesa começou-se por visitar o Templo dos Lamas, o Parque Jingshan, e percorrer o Mercado Donghuamen com petiscos-bizarros-apenas-para-turista-fotografar. Cruzou-se Tian’anmen, a famosa praça, cujo acesso é controlado por uma visível presença policial e entrou-se na imensa Cidade Proibida, um conjunto de palácios de madeira que acolheu inúmeros imperadores, onde o povo, pela sua modéstia, nem se podia aproximar.
Fora do centro de Pequim e seguindo as pisadas luxuosas do Império visitou-se o Palácio de Verão, os Túmulos Imperiais das Dinastias Ming e Qing, e seguiu-se até Badaling para subir e percorrer parte da Grande Muralha da China. A imponente Muralha escala milhares de quilómetros na montanha num sobe-e-desce constante que denuncia uma construção desumana assente no sacrifício da população escravizada.
Ainda na cidade espreitou-se parte do complexo olímpico onde se evidencia o Ninho de Pássaro e o Cubo de Água. No Templo do Céu, onde os imperadores reclamavam ao céu as melhores colheitas, passeou-se no parque que a população ocupa acompanhada por um baralho de cartas ou de uma agulha para tricotar a lã. Os mais desinibidos dançam.
Voou-se, porque num país imenso as distâncias são proporcionais, e em duas horas foi possível chegar a Xi’an uma antiga capital da China que se tornou incontornável com a descoberta do Exército de Terracota. Uma desilusão, tenho de confessar. Esperava eu uma legião de gigantes imortais mas a robustez dos guerreiros vergou-se ao tempo e às agressões humanas. Desencante-se a quimera! O exército é um conjunto monumental de cacos, de peças que o delicado engenho humano reconstruiu. Impressiona apenas a dimensão e a ostentação que antes da sua morte o imperador quis assegurar para si.
Antes de se deixar Xi’an visitou-se o Pagode do Grande Ganso Selvagem, outro templo budista, e as extraordinariamente bem conservadas Muralhas da Cidade.
O destino seguinte, novamente à distância de duas horas de avião, foi a moderna cidade de Xangai que pouco tem para oferecer além da extraordinária vista do Bund sobre o Pudong e os seus arranha-céus. A imagem ganha maior encanto quando o sol se evapora e as cores jorram da iluminação que forra as fachadas dos edifícios.
O Rio Huangpu, que separa as margens, é uma concorrida via para os barcos de carga que se cruzam indiferentes à sujidade da água. Por baixo do rio diversos túneis permitem a travessia mas destaca-se o Bund Sightseeing Tunnel que é percorrido por pequenas carruagens ao ritmo de sons e luzes num ambiente com rasgos psicadélicos. Uma ideia fabulosa.
O Templo Buda de Jade, também crente numa vertente moderna do budismo, não esconde, como todos os outros locais de culto visitados, as preocupações e os comuns interesses mercantis. Existem, no entanto, convictas devoções religiosas corporizadas nos imensos jovens que queimam incenso. Vagueou-se pela cidade passando pela Praça Popular, a pedonal Nanjing Rd, o Jardim Yuyuan e o mercado nas ruas envolventes. Terminou-se no 88º andar da Jin Mao Tower a 340 metros de altura.
Se é inegável que a China reúne condições fantásticas na corrida do desenvolvimento há pequenos pormenores que não garantem a linearidade da sua ascensão constante. As desigualdades sociais são evidentes e o hiato é profundo. Mesmo nos locais mais cosmopolitas a população evidencia comportamentos que o civismo não aprova. Uma geração será precisa para que o mundo e a China partilhem mais conceitos e melhor se conheçam.
Da oriental Ásia até à ocidental ponta da Europa caminhou-se com prazer ao ritmo dos preguiçosos ponteiros dos relógios. Nunca antes os 12 ºC da capital portuguesa se sentiram tão quentes.
Paulo Vyve