Uma viagem por Itália impõe escolhas ponderadas dada a riqueza e a grandiosidade da oferta. Os pontos de interesse, dispersos no espaço, sucedem-se sem parar. Há história, cultura, moda, religião… E há praias, montanhas, lagos, cidades, vilas e aldeias… Tal como uma criança facilmente se ousa querer tudo mas o tempo estabelece limites.
Definiu-se Milão como ponto de partida. Poderia dizer que a cidade é elegante ou sofisticada mas estaria a divagar sobre conceitos que me são estranhos. Nota-se que a aparência é uma preocupação interiorizada. Vestem-se marcas sonantes com preços genuinamente ensurdecedores. Completam-se os decotes com a maquilhagem cuidada porque a imagem ainda sugere mais que mil palavras.
A cidade isoladamente não fascina. A Piazza Duomo, a Piazza della Scala e a Galleria Vittorio Emanuele II são palcos onde a componente humana ofusca a arquitectónica. No Parco Sempione, junto ao Castello Sforzesco, encontrou-se algo mais real e o ambiente descontraído permitiu crer que existem pessoas comuns. O museu Pinacoteca di Brera repleto de pinturas revelou-se cansativo e repetitivo nos temas religiosos. Enquanto se devoram muitos e bons gelados, Milão sobressai pelo desfile de gente gira.
A norte da segunda maior cidade italiana encontra-se o vasto Lago Como que recebeu o nome da cidade situada na sua extremidade sul. A cidade é pequena e cuidada o que potencia a simpatia e torna a visita aprazível. No entanto, o interesse de Como depende efectivamente das águas que se dizem profundas. O lago é uma ternura, as casas e as povoações equilibram-se nas íngremes encostas espreitando por entre as árvores que adensam a paisagem. De barco chegou-se às pequeníssimas cidades de Torno e de Cernobbio. Mais tarde, de funicular, subiu-se até Brunate. A existência de saborosos gelados à beira do lago ajuda a consolidar a ideia de que por ali a vida tem qualidade.
Rimini, uma estância balnear na margem do Mar Adriático, foi a paragem que se seguiu. As praias de areia, que ofendem as que na outra margem servem a Croácia, são concessionadas. O acesso à areia, controlado por pequenos portões, é principescamente pago e oferece uma panóplia de serviços complementares: espreguiçadeiras, balneários, carrosséis, bares, ginásios, campos de jogos… A praia transforma-se numa feira popular elitista sem qualquer piada. Um dia haverá em que o Sol nascerá realmente para todos.
O centro da cidade está afastado da areia e do mar por inúmeras vivendas e hotéis que na época alta servem de refúgio aos forasteiros. Entre as simpáticas ruas que unem e cercam a Piazza Tre Martiri e a Piazza Cavour deixam-se os minutos fluir. E experimentam-se mais dois sabores coloridamente gelados no topo de um cone de baunilha, enquanto o tempo passa.
São Marino, o país, é extremamente pequeno. É uma mera constatação, não uma ofensa. A cidade, com o mesmo nome, é agradável e uma dádiva para o olhar porém sem o apoio logístico de Rimini a mais antiga república do mundo estaria praticamente inacessível. O cume do Monte Titano, integrado na Cordilheira dos Apeninos, apenas é alcançado de autocarro que parte com intervalos superiores a uma hora e não existem linhas-férreas nem qualquer aeroporto…
O centro da cidade é devoto aos turistas que voluntariamente se hipnotizam com a suposta inexistência de carga fiscal. No expoente máximo dos seus instintos consumistas colectam até à insanidade do cartão de crédito! Ignorando estes comportamentos pecaminosos, que se tornam cómicos, as ruas são acolhedoras e apetece demorar no pico do monte. Na cidade destacam-se as muralhas e as três torres. A panorâmica turvada pelo nevoeiro é pacífica se ignorarmos os sanguinários apelos da exposição “Vampiri e Licantropi”.
O regresso ao interior italiano culminou em Bolonha que é reconhecida além fronteiras pela sua antiquíssima universidade, pela cor avermelhada generalizada nas fachadas dos edifícios e pelas intermináveis arcadas que quase todas as construções adoptaram. A cidade não foi uma desilusão porque testemunhos prévios anteciparam uma cidade feia com poucos elementos de interesse. Salvam-se as centrais Piazza Maggiore, a Piazza del Nettuno. As grandiosas Torri degli Asinelli e Torri Garisenda encontravam-se isoladas por profundas obras de manutenção… Salvam-se os gelados que saciam a gula e eternizam o momento.
Florença, por seu lado, é recorrentemente elogiada. E é cativante! A cidade conjuga, num equilíbrio quase pleno entre beleza e funcionalidade, infinitas praças fabulosas: Piazza San Marco, Piazza della Santissima Annunziata, Piazza di San Lorenzo, Piazza di Maria Novella, Piazza di Santa Croce, Piazza de Pitti, Piazza della Repubblica, e ainda as principescamente adornadas Piazza di San Giovanni, Piazza del Duomo e Piazza della Signoria com as suas exuberantes e frias estátuas de pedra. Tudo parece estar próximo.
A Ponte Vecchio torna-se irrelevante perante tanta riqueza. As pessoas não ostentam um requinte desnecessário e do alto da Piazzale Michelangelo é possível contemplar toda cidade e o estreito Rio Arno que a atravessa. Entrou-se ainda no escultural Museo Nazionale del Bargello e no Museo Nazionale Alinari della Fotografia sem que nenhum fascinasse tanto como a sempre presente essência cremosa do gelado italiano.
Rumou-se mais a sul até à milenar Roma. A imensidão da cidade possibilita uma panóplia infinita de combinações entre o que fazer e ver. Tamanha oferta causa uma constante e intensa afluência de turistas que se movem lentamente e de forma compacta sem cessar. Não admira que os moradores, cuja actividade profissional não depende do turismo, não alimentem grande simpatia com os portadores de máquinas fotográficas.
Não é possível sintetizar Roma numa única imagem. As centenas de igrejas competem entre si e as praças animam-se com a água que escorre nas fontes rejubilantes. Para que conste, no tempo possível palmilhou-se a Piazzale Porta Pia, a Piazza Barberini, a Piazza di Spagna, a escadaria Scalinata della Trinità dei Monti, a Piazza del Popolo, a impressionante e rica Piazza Navona, o Campo De’Fiori, a Piazza della Rotonda, a Piazza di Pietra, a Piazza de Montecitorio, a Piazza Colonna, a famosa Piazza di Trevi com a sua fonte, a Piazza del Quirinale, a Piazza del Esquilino, a Piazza della Repubblica, a Piazza Vittorio Emanuele II, a Piazza Venezia e a Isola Tiberina. E a lista podia continuar.
Visitou-se o Palazzo del Quirinale, a Basilica di Santa Maria ad Martyres, comummente designado por Panteão, o Castel Sant’Angelo, onde uma pequena multidão aguardava pacientemente o pôr-do-sol, e o Parco Colle Oppio. Percorreram-se ainda as monumentais ruínas do império romano, dispersas do Colosseo até ao Teatro di Marcelo, com passagem demorada pelo Palatino e Foro Romano para alimentar os sonhos. Gelados também não faltaram e mereceram uma dedicação plena e repetitiva durante demoradas pausas.
No seio de Roma há um enclave que aloja o Vaticano, possessão da omnipresente Santa Sé. Questões administrativas à parte, o Vaticano visa assegurar a manutenção e a difusão dos princípios católicos utilizando nesta cruzada o mínimo espaço necessário para assegurar a liberdade espiritual… Especularia eu que a ideia patrocinaria um nobre Voto de Pobreza não houvesse exagerada sumptuosidade na Basilica di San Pietro e em toda a sua envolvente. Não querendo emitir juízos de valor limito-me apenas a referir que pisei também a Tomba di Pietro, a cripta onde diversos papas estão sepultados, e o Musei Vaticani. Após um labirinto de corredores, escadas e escadinhas no interior do museu culminou-se na ambicionada Cappella Sistina onde sistemáticas exclamações dos elementos da segurança impunham com vigor: “Silence! No pictures! No video!”. Deus tudo perdoará aos crentes que teimaram em não ouvir tais berros.
Regressou-se ao comboio com destino a Nápoles. Leituras prévias indicavam que as apertadas ruas da cidade eram animadas durante o dia pelo comércio e que à noite se tornavam sinistras. A amplitude do adjectivo “sinistro” é imprecisa mas justifica-se pelo tom cordial que se deseja manter. De facto a cidade não prima pela beleza. As caras são mais sérias, a roupa menos vanguardista e as ruas pecam pela sujidade. O lixo transborda dos contentores e reproduz-se exponencialmente no chão. Os próprios edifícios reflectem a ausência de luz e o peso dos semblantes. Nos passeios acumulam-se pessoas que aí sobrevivem em uníssono com uma realidade banalizada pela sociedade.
Percorreu-se a envolvente da Duomo, as estreitas ruas do Quartieri S. Lorenzo até à Piazza del Gesù Nuovo. Do cume da Piazzale S. Martino a visão deveria alcançar o Vesúvio mas com o indesejado nevoeiro restou apenas a crença que ele se escondia além da visão. Desceu-se para a Via Toledo e Quartieri Spagnoli, com passagem pela Piazza Plebiscito, e visitou-se ainda o Castel Dell’Ovo.
Ainda na sombra do Vesúvio estão as antigas e vizinhas cidades romanas de Pompeii e Herculaneum. Ambas foram vítimas da fúria da lava, do fogo e das cinzas que a terra expeliu no ano 79 DC. As ruínas agora desenterradas estão substancialmente destruídas mas as escavações permitem contemplar a imensidão de Pompeii. Em ambos os locais, é possível entrar no que resta das casas e perceber que existia requinte naquelas formas de vida. O conteúdo está nos detalhes, não nas toneladas de pedras que resistem empilhadas.
A Itália continental foi abandonada à noite de barco e a com a madrugada pisou-se terra em Palermo, na mediterrânea ilha da Sicília. Os locais de referência da cidade podem ser percorridos em poucas horas. Passeou-se pela Piazza Castelnuovo, Piazza Giuseppe Verdi, Piazza Bellini com a sua bela Fontana Pretoria, Piazza S. Spirito, Villa A Mare, Villa Giulia, Piazza della Cattedrale, e Villa Bonanno. Uniu-se a Porta Felice à Porta Nuova. A cidade proporcionou um agradável dia e os gelados impuseram-se deliciosos como se nada mais doce existisse para o paladar!
No último dia, considerando o cansaço acumulado nos pés e a preguiça extrema, optou-se por louvar os deuses da praia. Perto, em Mondello, a areia gratuita convidou a esquecer que o mês de Outubro já era real. A água quente do mar compensou o Sol que no céu ia perdendo gradualmente a sua intensidade… As nuvens instalaram-se silenciosamente e uns pingos de chuva decretaram, pouco depois da hora de almoço, que a ousadia veraneante estava concluída.
Com um gelado já a aconchegar a alma nada parecia grave. A chuva abrandou até parar mas regressou recheada com relâmpagos e trovões demolidores. As férias terminaram molhadas, absolutamente encharcadas.
Não mais se devoraram gelados e uma angústia nutritiva pairou no ar. Por fim, os cappuccinos preencheram o vazio coroando uma longa e preenchida viagem apenas desgastada cirurgicamente pela irrelevante simpatia italiana. O vivido será recorrentemente recordado com intenso agrado. E quando se desfazem as malas, entre as paredes que nos viram partir, pouco mais interessa além do sorriso alojado nos lábios.
Paulo Vyve