Voei para a Coreia com um ano de atraso. Em 2018 a vida não me incentivou a folhear o guia de viagem que já tinha comprado. Porém, e como é meu costume, não foi uma viagem preparada ao detalhe. Defini uma rota de norte a sul excluindo as ilhas por uma questão de tempo.
As previsões meteorológicas pintavam com gotas de chuva os dias de férias o que, apesar de não ser uma fatalidade, é uma chatice quando parte dos planos assenta em passear a máquina fotográfica ao ar livre.
Não sendo perfeito o tempo permitiu vaguear por Seul. A chuva incomodou mas a humidade, que se entranhava na roupa, foi muito mais complicada de gerir. A cidade é caminhável mas qualquer simples passeio tornou-se numa prova de esforço.
Apresentei-me à cidade em frente ao palácio Gyeongbokgung, ainda de portas fechadas, desci até à praça Gwanghwamun e depois de percorrer várias ruas secundárias (cheias de pessoas apressadas a caminho do trabalho) entrei no pequeno templo budista Jogyesa envolvido por prédios.
Caminhei até à Bukchon Hanok Village famosa por sobreviver ao crescimento vertical da cidade. É um daqueles locais típicos e com história estragados pelo turismo. Há vigilantes nas ruas e novelos de pessoas nos locais que as redes sociais coroam como fotogénicos. Ao longo do bairro repete-se a sinalética que recorda a necessidade de silêncio e de respeito pela privacidade dos residentes.
O enorme espaço do palácio Changdeokgung tem o selo de Património da Humanidade da UNESCO mas é uma visita monótona que a guia não conseguiu embelezar (“look at this beautiful room”). No centro da cidade, desci para o caminho ajardinado Cheonggyecheon, que abaixo do nível da estrada proporciona um isolamento agradável, parei na Seoul Plaza e continuei até à porta de Sungnyemun.
Nos mercados de Namdaemun e de Gwangjang, que espantam pela dimensão e (falta de) organização, perdi-me despreocupadamente. Agarrei um banco que ficou livre, apontei com o dedo para o que estava a ser cozinhado e comi o que me serviram… Não recordarei o aroma nem o sabor daquela comida porque não eram fascinantes mas não esquecerei que do outro lado do balcão estava uma mulher de trabalho. O que para mim era uma (barata) experiência gastronómica para ela era uma refeição entre muitas que tinha ainda por vender. Não há ali requinte, é um duro ganha-pão. Há seguramente uma parte da população que abastece a despensa e a alma nestes mercados que convivem com modernos centros comerciais nas redondezas.
Gangnam é uma zona a sul do rio Hangang que há uns anos ficou universalmente famosa por conquistar os mais distintos tops musicais. Não é uma área com muito para visitar além do templo budista Bongeunsa. Nas avenidas largas os prédios altos assentam nas vitrinas luxuosas sem que se veja muito movimento. As lojas parecem desertas ou será que os clientes encontram aqui a discrição desejada?
Antes do sol cair subi a colina de Namsan de teleférico. No topo está a Seoul Tower e um parque com zonas de restauração inundado com famílias e jovens. O meu objectivo era ver a imensidão das luzes da cidade e não me desiludi. A cidade incrivelmente não termina em nenhum dos pontos cardeais. O seu gigantismo não é plenamente perceptível pela capacidade de compreensão humana que não gere bem o conceito de infinito.
Saí da capital e embarquei numa excursão até à DMZ (Demilitarized Zone) que separa o norte e o sul da península da Coreia. Temi que a viagem fosse demasiado comercial para o meu refinado gosto mas enganei-me. Na sua essência a excursão vale pelo que não se vê. Sem detalhes históricos, que a internet descreverá, a DMZ é um corredor de segurança que se sobrepõe à fronteira e onde não há forças militares em respeito pelo armistício assinado em 1953. A Guerra da Coreia, com raízes no fim da II Guerra Mundial, não terminou oficialmente e este afastamento foi o mal menor que permitiu cessar um conflito que contabilizou provavelmente mais de 3 milhões de pessoas.
Depois de um ligeiro controlo militar ao autocarro e de assistir a um pequeno documentário obrigatório, desci ao Third Tunnel escavado pelo norte para uma eventual invasão do sul. O regresso à superfície (73 metros de profundidade) obriga a uma íngreme subida que não justifica o pouco que se vê nas profundezas escuras.
O Dora Observatory, o principal ponte de interesse, é uma janela para uma realidade crua onde à vista desarmada há dois mundos separados por arame farpado. A estação de comboio de Dorasan é um local de esperança ao anunciar-se como a primeira paragem para o norte (e não a última paragem do sul).
Viajei até Suwon de comboio aproveitando as benesses do Korail Pass previamente adquirido. A fortaleza que envolvia a antiga cidade, hoje património da humanidade, é a atracção e, num sobe e desce constante, as pernas desafiam a humidade enquanto anseiam por ar condicionado. É um passeio agradável onde também merece ser contemplado o contraste entre a pacatez das muralhas e a cidade quotidiana que se expandiu no seu exterior.
Para Daegu sentei-me num KTX para uma tranquila viagem de comboio. A cidade é feia, bastante descuidada e pouco preocupada em esconder a sua sujidade. No primeiro contacto, entre a estação e o hotel, percebi que os comportamentos poderiam ser menos civilizados que a norte. Os motociclos, com uma indiferença perigosa, invadem o passeio sem piedade dos peões. Passeei pela cidade e entrei no pouco cativante Yangnyeongsi Oriental Medicine Museum.
O melhor bibimbap de toda a viagem comi num “restaurante” no centro comercial subterrâneo da estação de comboio. Arrisquei pedir uma bebida engarrafada e não tive resposta. Quando repeti o pedido ouvi “water” e apontaram para um jarro em cima de um mini frigorífico. Desconfiado provei a água do jarro mas terminei a refeição com a água que transportava na mochila.
Rumei a Gyeongju, que caracterizam como um museu sem paredes, para durante um dia deambular entre alguns dos seus pontos de interesse. Comecei pelo Bulguk Temple, que é enorme e merece ser visitado com calma, e palmilhei a longa subida até à gruta Seokguram, onde se protege um Buda esculpido na pedra.
No centro da cidade visitei o parque Tumuli Gongwon que acolhe 23 túmulos de monarcas depositados no interior de pequenas colinas relvadas. Não ocorre a sensação de se estar num cemitério e as famílias passeiam-se alegremente.
Quando cheguei a Busan explorei a zona de Seomyeon e alimentei-me numa rua paralela à avenida principal. Apreciei a confecção dos alimentos desligando a minha sensibilidade a questões de segurança alimentar. Não se pode pensar nisso. Foquei-me no esforço hercúleo das vendedoras que se desdobram numa bancada de 2 metros estacionada no meio de uma rua pedonal. A logística com alguidares, água, fritadeiras e ingredientes é um malabarismo digno de ser admirado. Paguei pouco (muito menos que o preço de um café com leite no Starbucks). Estes contrastes sociais tardarão gerações a dissipar-se.
Explicaram-me que Busan se separa em duas metades cuja divisão natural está numas colinas que parecem montanhas. A oriente caminhei desde o UN Memorial Cemetery até ao Igidae Park, com vista para a baía Suyeongman, que contornei até Dongbaek Park. Ainda fiz um desvio para chegar ao Busan Cinema Center. A norte da cidade, rumei ao templo Sangwangsa que se destaca pela capacidade em acolher devotos.
No lado ocidental o ponto mais referenciado é o recuperado bairro de Gamcheon. Aquele que foi um espaço de refugiados de guerra, onde a miséria terá sido madrasta, está hoje de cara bem lavada. O projecto, que está muito bem conseguido, não se limitou a uma limpeza estética, há conteúdo cultural, vida e lojas de artistas dentro das paredes e dos telhados pintados. É possível sair do caminho recomendado, fugir da confusão e perceber a dimensão do bairro.
A chuva que estava escondida e esquecida voltou em força no penúltimo dia da viagem. Tentei ocupar-me junto à BIFF Square em vão. Entrei em alguns mercados que foram surgindo (como o Jagalchi que é o maior mercado de peixe do país) mas a água dos céus caía sem parar e o dia não se prolongou muito mais.
Embarquei no voo de regresso na expectativa de ser presenteado, algures durante as 13 horas de voo, com um último bibimbap. Não era pedir demais porque na ida o menu incluía este monumento da gastronomia coreana.
O prato, que me conquistou, pode ser uma metáfora da vida quotidiana. Os ingredientes estão compartimentados numa tigela sendo o fundo preenchido com arroz. Arroz branco, simples. Depois de se adicionar a gosto o Gochujang para temperar misturam-se todos os ingredientes. Envolvem-se até que das partes resulte uma mistura agradável ao palato. É divino. A vida, mesmo na Europa, não tem de ser mais difícil que isto: pegar no que temos e conjugar tudo evitando o caos.
Paulo Vyve