Consagrou a história que, no distante ano de 1543, os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ao Japão. Aos olhos desses valentes marinheiros a minha viagem aeronáutica de cerca de 30 horas foi um passeio dominical que pela facilidade me embaraça.
Já em terras nipónicas, numa necessária escala nocturna em Tóquio a caminho de Fukuoka, na ilha de Kyūshū, ocupei-me com os primeiros detalhes curiosos: as coloridas e numerosas máquinas vending, a inexistência de transportes públicos ao início da noite e a devota dedicação da equipa de limpeza no cuidado de uns metros quadrados de chão nunca sujo.
Em Fukuoka, muitas vezes referida pelo nome histórico de Hakata, tornou-se evidente o drama linguístico que nunca se converteu num problema. Nunca, numa viagem além fronteiras lusas, falei tão pouco inglês! Mesmo a população adolescente exprime dificuldades profundas que espantosamente são ultrapassadas sem esforço. Cientes das dificuldades de comunicação com estrangeiros é comum existirem instruções fotográficas que saltam para cima do balcão num piscar de olhos. Quando estas cábulas faltam a linguagem gestual assume contornos universais. Noutras vezes um piscar de olhos ou um encolher de ombros são suficientes. Independentemente do caso, um sorriso é um ingrediente constante.
A deambulação pela cidade começou às apalpadelas. As ruas não identificadas e as portas não numeradas impuseram alguma precaução dissipada com um mapa oferecido no posto de turismo. Não foi preciso procurar para que santuários budistas e xintoístas surgissem descontraidamente no caminho. A envolvente verde dos edifícios em madeira é convidativa e os devotos, numa espantosa amplitude etária, concentram-se nos seus desejos e percorrem o templo sem a formalidade de uma cerimónia protocolada.
Ao explorar o templo Sumiyoshi-jinja cruzei-me com os preparativos de um casamento típico. Segui para o parque Maizuru onde das ruínas do antigo castelo se observavam os quatro cantos da cidade e segui para o adjacente parque Ōhori. Demorei-me nos meandros do templo Kushida-jinja, passei pelo Ryuguji deambulei no interior do Tōchōji onde contemplei o enorme buda de madeira e despedi-me da cidade no templo zen Shōfukuji. Acredito que me tenha cruzado com inúmeros turistas mas confesso que não os reconheci. Contei menos de uma dezena de pessoas não asiáticas na cidade.
A sul de Fukuoka visitei Nagasaki eternizada pela trágica história escrita no ano de 1945. A cidade, alvo da segunda e última bomba atómica lançada num cenário de guerra, exibe a dimensão da catástrofe numa perspectiva muito nacional e pacifista.
As feridas dos que sobreviveram estão curadas e as vítimas mortais são recordadas em diversos locais e monumentos com destaque para o Peace Memorial Hall e o Nagasaki Atomic Bomb Museum. A barbaridade imensurável das armas utilizadas é conhecida mas torna-se arrepiante em pormenores dramáticos como a falta de água para apagar os incêndios e aliviar os feridos queimados.
A chuva impiedosa reduziu a mobilidade mas não impediu de palmilhar, até ao cair da noite, a zona do hipocentro, o Peace Park e encontrar os santuários de Suwa-jinja, Shōfukuji e ainda o curioso templo de Fukusaiji em forma de tartaruga.
A norte de Kyūshū encontra-se Hiroshima, que partilha com Nagasaki as mágoas da catástrofe nuclear. A cidade foi bombardeada a 6 de Agosto de 1945, 3 dias antes de Nagasaki, estimando-se a perda de cerca de 150.000 vidas humanas.
Na zona do hipocentro foi criado o Peace Memorial Park que é dominado pelos destroços imponentes da A-Bomb Dome. Os locais desenham e redesenham a carvão a cúpula que resistiu quando tudo o resto se desfez. A área é visitada por inúmeros estudantes que depositam incansavelmente origamis em forma de grou num apelo à paz e em homenagem a Sadako Sasaki uma das mais famosas vítimas. Visitei o Peace Memorial Museum, na outra extremidade do parque, antes de uma curta viagem de comboio e barco até à ilha de Miyajima que é património mundial da humanidade.
O santuário Itsukushima-jinja encontra-se no mar, pelo menos durante a maré-cheia, e o seu pórtico, correctamente designado por torii, é uma imagem que reflecte a serenidade da ilha. Os únicos apontamentos de delinquência prendem-se com os veados que habitam a ilha fiéis a um estilo de vida rudimentar: roubar para comer. Sem dramas, os animais movem-se e interagem harmoniosamente com os visitantes. O espaço não sendo imenso está repleto de cantos e recantos que convidam à descoberta como o templo Daishō-in.
De comboio apontei novamente para norte e pernoitei em Ōsaka que abriu as portas de uma atmosfera intensamente urbana e comercial. A primeira impressão do bairro que me acolheu, junto à estação de comboios de Shin-Ōsaka, indiciava a prestação de serviços para adultos em prédios com entradas pouco familiares.
Na zona de Minami, entre Namba e Shinsaibashi, a opulência do consumismo é admirável. Avenidas pedonais infinitas são recheadas por uma multidão compacta como se no mundo não existisse outro paraíso. Parece um formigueiro gigante, um labirinto de néons que se estende na horizontal e na vertical. Das lojas fogem altos decibéis e pregões que em japonês prometem, de certeza, o bom e o barato.
Subi os 173 metros do complexo Umeda Sky Building num elevador panorâmico que culminou nos últimos andares numa escada rolante entre as duas torres até ao Floating Garden Observatory. No topo turistas e casais enamorados contemplavam as luzes da cidade que se perdiam no horizonte. A imensidão do mundo citadino é redutora para a dimensão do homem vulgar mas como isso não é novidade continua-se com um sorriso convicto.
A cidade de Nara foi a primeira capital permanente do Japão e é um centro cultural e religioso com inúmeras influências chinesas. É igualmente povoada por venerados veados que integram o parque Nara Kōen e que acompanham os visitantes na expectativa de ofertas alimentares.
Parei no templo Kōfukuji e continuei para o santuário Tōdaiji que é a jóia da coroa. É impossível não destacar o pórtico Nandai Mon e o Daibutsuden, o maior edifício em madeira do mundo, que aloja um Buda gigante em bronze e ouro. A imponência dos edifícios ganha particular interesse face aos materiais utilizados. Na outra ponta do parque está o santuário Kasuga Taisha que é rodeado por centenas de lanternas em pedra que criam um ambiente peculiar. Em determinadas ocasiões as lanternas são iluminadas com fogo mas eu não tive essa sorte…
Kyōto é tão efusivamente recomendada que temi frustrar as expectativas. Os adjectivos associados à cidade não escasseiam e se evidências isentas fossem precisas seria possível enumerar os 17 locais elevados a Património Mundial da Humanidade.
Felizmente fui imediatamente conquistado na Bamboo Grove, na área de Arashiyama. A densidade e a altura dos bambus desvendam um mundo mágico quase hipnotizador. As canas trepam aos céus e criam um microclima de isolamento apenas travado pelos turistas que não cessam e que recordam que a floresta não é infinita. A proximidade dos templos Tenryūji e do Nonomiya-jinja é um convite irrecusável a um instante de recolhimento com os pés bem assentos na terra. Sozinho entre a multidão.
No centro da cidade caminhei pelo castelo Nijō-jō, cercado por um fosso, e percorri o Kyōto Gyoen, o parque do Palácio Imperial. Segui pela Teramachi-dōri, uma rua pedonal coberta, até chegar ao mercado alimentar da Nishiki-dōri repleto de bancadas indecifráveis.
Junto ao rio explorei a socialmente incorrecta rua de Pontochō que explica o seu nome através da influência portuguesa (“ponto” de “ponte”) e na outra margem procurei, quase em vão, gueixas no bairro de Gion. O dia terminou de noite às portas do templo Sanjūsangendō que fechou antes de me deixar entrar.
A despedida de Kyōto e a necessidade de alojamento conduziram-me a Himeji. A principal atracção da cidade é o castelo Himeji-jō aclamado como um dos mais bonitos de todo o Japão e parcialmente encerrado para manutenção até 2015… Foram horas calmas em ritmo de descanso!
O Monte Fuji é um dos maiores ícones japoneses e os seus 3.776 metros são alvo de admiração e peregrinação. Apesar de se situar nos arredores de Tóquio a viagem não é rápida como se desejava. Para quem não fantasia trepar ao cume, que é desaconselhado de Setembro a Junho, a escolha natural são os lagos que rodeiam a montanha e oferecem boas panorâmicas. A aproximação à cidade de Kawaguchiko, e ao lago com o mesmo nome, alimentou o receio de não conseguir ver o cume do Fuji-san. O céu nublado, que impedia a visão idílica, não me inibiu de subir ao vizinho monte Tenjō-zan de teleférico que sem surpresas não melhorou as perspectivas. As únicas imagens do Fuji-san obtidas já se encontravam impressas em postais.
Os primeiros passos em Tóquio foram dados à noite no bairro de Shinjuku onde subi ao 51º andar da Shinjuku Sumitomo Building, para contemplar a infinita cidade a 200 metros de altura, e deambulei sem rota definida pela área repleta de grandes lojas até ao curioso edifício Mode Gakuen Cocoon Tower. Também dei um passeio nocturno pela zona de Marunouchi, em redor da Estação de Tóquio, onde me aventurei no interior do edifício Tokyo International Forum. Segui para o selecto bairro de Ginza, que promove as importadas tendências ocidentais, e entretive-me com as cativantes luzes publicitárias.
A norte da cidade visitei o “vintage” bairro de Yanaka onde sobrevivem pequenas casas de madeira e templos numa atmosfera quase rural. Visitei os modestos santuários de Gyokurinji, Enjuji e Zuirinji. À chuva entrei no parque Ueno Kōen e abriguei-me no templo Bentendō antes de caminhar para o principal templo budista da cidade, Sensōji, em Asakusa. O espaço enorme é preenchido por uma massa humana de turistas e devotos que não se demovem com a chuva. A vertente comercial convive em parceria com os propósitos religiosos na aproximação ao templo na Nakamise-dōri.
O tecnológico bairro Akihabara publicita-se pelos preços baixos mas a sua maior virtude está na gigantesca a oferta. As lojas electrónicas, que ocupam uns pisos por cima dos outros, alimentam o voraz apetite consumista da nação. O bairro é igualmente frequentado por fãs de anime e manga, designados por otakus, que apesar de socialmente aceites sem estigma levantam o véu de um submundo nas caves das livrarias e nos “maid cafés”. Nem tudo o que parece inocente será.
O último dia em Tóquio começou com alertas de tufão e restrições nos serviços e nos transportes. Lentamente os ventos e as preocupações dissiparam-se e pude visitar os jardins do Palácio Imperial, abertos ao público em geral, que são tudo menos impressionantes ou interessantes. Vagueei ainda pelo templo budista de Zōjōji, com as suas coloridas estatuetas de crianças, pela Tokyo Tower e pelos bairros de Roppongi e Shibuya.
Independentemente da duração da viagem nunca será possível visitar e conhecer tudo. A velocidade dos Shinkansen nos carris (que também se atrasam) ajudaram mas reconheço que Ōsaka, Kyōto e Tóquio justificavam estadias mais demoradas e descontraídas.
O Japão é um amor fácil e tem um charme que nasce das diferenças nos detalhes do quotidiano. Soubesse eu o mínimo da língua japonesa e a minha predisposição para revisitar o país do sol nascente seria confundível com o delírio de assentar arraiais. A certeza de que não existem mundos perfeitos não inibe a possibilidade de mundos quase perfeitos!
Paulo Vyve