Na génese de um liveaboard há um barco que, além de assegurar o transporte e o alojamento, é a plataforma de entrada no admirável mundo submerso. Não é um mero cruzeiro, o intuito é mergulhar, descer além da superfície terrestre e sentir o peso das atmosferas que calcam a sua pressão no corpo. Mergulhar, mergulhar, mergulhar!
Tudo começou com um “check dive” onde se questionou se o mergulhador luso, que está habituado às agressivas condições do Atlântico, se ambientaria às águas quentes e transparentes do Mar Vermelho. Não é piada, é um procedimento assumido com contornos sérios e, para que fique escrito, foi feito e bem feito.
O mergulho em Sha’ab El Erg permitiu dar forma ao sonho. O acaso providenciou uma tartaruga que na sua pacatez emitiu as boas-vindas… Tanto nos repetentes como nos estreantes não houve tempo para desilusões.
O regresso à água ocorreu num naufrágio. Onde os barcos não podem chegar, sob pena de destino idêntico, descansa o Ulysses tombado de lado. Os mais felizardos encontraram golfinhos. Como grandes foram descritos… Não vi mas acredito. O primeiro dia não terminou sem uma incursão nocturna num outro destroço, ou meio destroço, porque pouco resta do Bluff Point. Mas a vida era imensa e havia inúmeras pequenas criaturas grandiosamente coloridas.
Para evitar o desperdício de tempo os dias começavam voluntariamente cedo. Mal acordados descemos até ao Rosalie Möller que no fundo assenta como se a flutuar estivesse. Abatido por tropas alemãs na 2ª Guerra Mundial foi uma das vítimas que não se evitam. Um cabo preso à estrutura do navio permitiu uma confortável descida e um passeio que cativou pelo estado geral de conservação. A sala do capitão era luxuosamente repleta de peixe que se amontoava como se o resto do mar fosse inabitável. A subida foi controlada e demorada para que os efeitos do mergulho descompressivo se dissipassem nas águas quentes.
O segundo mergulho do dia ocorreu no destroço do Kingston de que pouco se sabe. O naufrágio está absorvido pelo recife que o tomou e aceitou como seu. Recordo umas colunas em ferro que surgiram imponentes como as dos templos antigos. O coral era rico em peixes, peixinhos e peixões. Um autêntico santuário para celebrar a vida.
Continuou-se para o Thistlegorm, referência maior dos naufrágios, onde muito há para ver! Realizaram-se três mergulhos insuficientes para saciar. Começou-se pelo exterior que demonstrou um grande barco onde a destruição imposta pela força da natureza ainda não se concluiu.
Mergulhou-se depois de noite seguindo um percurso idêntico. Lanternas não faltaram para que os minutos submersos fossem iluminados. Pouco se viu mas na subida degustou-se a força da corrente que o briefing tinha anunciado. A poucos metros da superfície soprava com a força do vento que abre e parte janelas. O vendaval transformou em bandeiras desfraldadas os corpos que se agarravam à corda. Absorvidos na escuridão da noite a pausa de segurança tornou-se memorável.
Cedo se iniciou a terceira visita ao navio com acesso ao interior do destroço onde se corporizam as famosas fotografias das motas e das carrinhas conservadas pelo mar quando o destino as conduzia para a destruição da guerra. O ar libertado pelos inúmeros mergulhadores acumulava-se nos espaços fechados… E os tectos transformavam-se em espelhos que as mãos atravessaram curiosas. Os mais ousados colocaram nas profundezas a cabeça fora de água e respiraram. Eram bolhas de ar que denunciavam a presença do homem.
Ainda com ar na garrafa e tempo para respirar sobrevoou-se o navio. Um cardume de vinte Circular Batfishes deambulava pacatamente ao nosso lado. Relaxadamente bonito. Regressou-se à corda para um subida controlada e um novelo de peixes envolveu-nos de forma densa. Nadavam depressa, mudavam de direcção com a agilidade de quem voa… E com uma visibilidade que permitiu demoras sentiu-se uma pequenez fria, demasiado humana, e uma alegria infantil por poder estar, ver e sentir.
Navegou-se para outro naufrágio, o Dunraven, cujo casco de pernas para o ar permitiu entrar no seu interior. Pouco encantou mas rapidamente se subiu para o recife onde vida existia. Peixinhos. Mais peixinhos!
O rumo traçado levou-nos até ao Shark & Yolanda Reef no parque nacional e zona protegida de Ras Mohammed. Caiu-se literalmente num abismo onde o fundo dista 790 metros. O azul era profundo, intenso e tornava-se no limite da visão baço. Tudo o azul absorvia! Assustador. Pairou-se com uma parede de corais nas costas e um aquário do tamanho do mundo à nossa frente. Barracudas circulavam com a indiferença que caracteriza quem não gosta de receber visitas. Fomos totalmente ignorados. Desinteressantes! Possivelmente invisíveis. Era a dimensão do ceú aos nossos pés, à nossa frente e por cima de nós. E três dimensões são insuficientes para contextualizar a magia do local.
O recife que se seguiu conheceu em tempos um naufrágio com o nome feminino de Yolanda. A carga ainda visível era descomplexadamente humana: banheiras, lavatórios e sanitas ora isoladas, ora desfeitas em cacos. Terminou o dia com um mergulho nocturno na Sting Ray Station que, contrastando com o oásis anterior, não se tornou fascinante.
Um novo dia e um regresso ao Shark & Yolanda Reef. Um impiedoso mergulho no tanque universal do azul imenso onde o único desejo foi demorar… Fazer com que o tempo se alongasse. Transformar um minuto numa vida. E um bar de pressão da garrafa num suspiro eterno. São momentos destes que me comprovam a pequena sensibilidade humana. Mundos não conquistados regem-se pelo livre arbítrio e sobrevivem vorazmente sem qualquer respeito por castas humanamente superiores. O prazer prolongou-se por instantes abaixo da profundidade máxima e no tempo até ao limite do ar enriquecido. No fim uma Spotted Eagle Ray mostrou-se. Outro sopro do paraíso…
Antes do terceiro mergulho neste local visitou-se a Jackfish Alley onde se reencontrou uma tartaruga! Novamente o nitrox foi pouco pelo que se continuou em snorkeling a acompanhar um dos animais mais simpáticos que a natureza imaginou.
O mergulho nocturno, para completar o dia, foi em Beacon Rock junto ao local onde o barco pernoitou. Pouco se viu além do lixo que se acumulava no fundo. Mas apesar da má impressão, de manhã percebeu-se que o local era digno de ser visto! O barco Emperor Fraser, que se afundou em Dezembro de 2009, surgiu inesperadamente no percurso. Dedicava-se, imagine-se, a passear mergulhadores pelas águas quentes do Mar Vermelho. Ao fundo foi sem misericórdia… Ainda hoje o mar engole as cascas de noz em que ousamos navegar. Ainda hoje o mar salgado deixa as mães a chorar e as noivas por casar.
Na senda de mais obra humana afundada seguiu-se para o Carnatic que repousava inclinado com o apoio da parede do recife. Foi possível percorre-lo interiormente oscilando lateralmente entre os andares. Poucos metros separam este naufrágio de outros que sucumbiram ao apetite do mar. É um recife que se esconde no meio da água mas que parece um cemitério. O Giannis D permitiu novamente uma incursão pelo interior onde os corredores se estendem ao longo dos pisos acompanhando a inclinação do destroço. O movimento não respeitou os princípios básicos da flutuabilidade e obrigou a apoios desconfortáveis na chapa amadurecida. A noção da superfície foi apenas suportada pelas bolhas de ar que, sempre apressadas, tentavam subir. Atravessaram-se corredores e portas sem receio até que o equipamento ficou preso. Havia ar para respirar calmamente e tempo para rebolar uma solução. Havia ainda calma suficiente mas foi mais fácil pedir ajuda. Buddies uni-vos e da água regressarão.
Anunciado estava o regresso e o computador de mergulho antecipava que viajar até às alturas do espaço se incompatibilizava com as descidas registadas ao fundo dos mares. Modernices que são tomadas a sério quando a saúde poderá ser a moeda de troca. Fintou-se ainda a ciência com um mergulho no naufrágio do Chrisoula K para 73 minutos de despedida. Beberam-se pela última vez as cores do arco-íris.
A semana de férias passou intensamente depressa. Foi mergulhar, comer e preguiçar sem limites no luxuoso M/Y Aldebaran que nos acolheu. O ambiente foi permanentemente excelente. Tudo correu bem. Apenas o regresso foi penoso. Demorado e frio com o desconforto do fim. Nunca apetece acordar de um sonho.
Paulo Vyve