As terras que se estendem além da já tombada cortina de ferro exercem um fascínio espontâneo sobre o imaginário ocidental. A marcha da global uniformização cultural atenua as diferenças do mundo antigo mas felizmente permanecem as raízes de um património tristemente relacionado com a bélica história dos séculos passados.
Se não existissem imprevistos não seriam necessários três voos para chegar a Budapeste. Não se correria em vão pelos tapetes rolantes dos aeroportos. Não se perderiam voos de conexão. E a bagagem nunca seria esquecida no trânsito caótico dos aeroportos. É, no entanto, proibido no início de uma viagem ficar aborrecido com estas indesejadas surpresas. Ingenuamente, e no conforto da ignorância, não se imagina que o regresso a casa poderá ser muito mais atribulado.
Com os pés assentes nas firmes margens do Danúbio, aceitando-se Buda a ocidente e Peste a oriente, divagou-se pela cidade relaxadamente. O conceito de “férias” elevou-se mais alto até à adoração. A devoção à “preguiça” e a dedicação ao “descanso” foram constantes.
Entre os pingos da chuva que os céus inicialmente não contiveram, percorreu-se Peste com passagem pela sinagoga, Nagy Zsinagoga, pelo mercado central, Nagy Vasarcsarnok, pela catedral, Szent István Bazilika, pelo parlamento, Országház, pelo edifício da ópera, Magyar Állami Operaház, e pelo parque da cidade, Városliget. Parou-se ainda na Roosevelt Tér, Szabadság Tér, Hösök Tere, Vörösmarty Ter, Vigado Tér, Egyetem Tér, na multicolor Erzsébet Ter e regressou-se diversas vezes à Váci Utca.
As pontes Szabadság Híd, Erzsébet Híd, Széchenyi Lánchíd e Margit Híd unem as margens. Saltou-se para Buda e da praça Batthyány Tér subiu-se para o Bastião dos Pescadores, Halászbástya, encostado à Igreja de Matias, Mátyás Templom. Percorreu-se a deliciosa área pedonal de Tóth Árpád Sétány até à gruta Budavári Labirintus, por baixo da colina, onde de uma fonte brotava miraculosamente vinho! Continuou-se até ao castelo, Budai Vár, e depois da descida até ao rio escalou-se, degrau a degrau, até ao monumento que recorda a libertação da cidade pelas tropas soviéticas, Szabadság Szobor, com uma pequena paragem a meio junto da estátua Szent Gellért Szobor.
Entre as margens caminhou-se na agradável e verde Ilha Margarida, Margit Sziget, que se estende por 2,5 km ao longo do Danúbio.
Visitaram-se as exposições de fotografia no Magyar Nemzeti Muzeum e Mai Manó Házbam e entrou-se no Museu de Belas Artes, Szépművészeti Múzeum, e no Terror Háza Múzeum. Houve ainda tempo para viajar até ao parque das estátuas comunistas, Szoborpark, e deambular de piscina em piscina nos banhos de Széchenyi Fürdö, onde hipopótamos se movimentam com a agilidade de quem conhece os cantos à casa.
A imagem antecipada de Budapeste supera largamente a real imponência e crueza da cidade onde imensos edifícios permanecem esquecidos e se desprendem demoradamente. Em Peste há bastante entretimento especialmente nas agradáveis e cosmopolitas avenidas vizinhas do rio. Há espaços verdes para descansar. Há segurança na rua a qualquer hora. Mas o Danúbio é, também por estes lados, castanho. A colina de Buda é pequena e a sua monumentalidade dissipa-se na agradável vista para Peste. Fora dos percursos turísticos a vista é modesta e sossegada.
Enquanto por terras húngaras se gozava o sol que entretanto abençoava o povo, a milhares de quilómetros, algures na Islândia o impronunciável vulcão Eyjafjallajökull, ou as suas cinzas, começaram a assombrar o regresso. O pânico apocalíptico generalizado, que regularmente inunda os meios de comunicação social e assusta o comum mortal, implicou o encerramento dos aeroportos no norte da Europa. Os ventos sopraram no pior dos sentidos e enquanto o diabo esfregou um olho, receando a pior das nuvens, todo o continente aterrou à força… Sem aviões os sonhos não voaram e o caos, a tender para o pesadelo, instalou-se.
Felizmente continuou a haver um local para dormir e todas as condições existentes se mantiveram. Além do desconforto do desconhecido face ao regresso tudo correu bem. Equacionou-se, mais do que uma vez, e sempre que a abertura do tráfego aéreo era adiada por mais um par de horas, viajar de autocarro… Ou de comboio… As notícias difundidas em Portugal antecipavam que as alternativas terrestres não respondiam às necessidades. A famosa CNN emitia relatos trágicos onde tudo tendia a piorar.
Os voos entretanto remarcados, glorificados pela reabertura dos aeroportos, terminaram cancelados. Substituíram-se novamente as reservas e já no aeroporto, numa fuga para a frente, alterou-se manualmente a viagem para um avião que estava oficialmente lotado. Houve espaço e lugar para viajar confortavelmente até Lisboa! Se turbulência existiu os seus efeitos foram absorvidos pela ansiedade do regresso. Nunca antes se tinha sentido Portugal tão longe. Nunca antes se tinha constatado de corpo e alma que o mundo, como o conhecemos, pode parar.
Paulo Vyve